Há algum tempo, uma amiga minha teve seu carro quebrado em um sinal num dia movimentado na Avenida Agamenon Magalhães. Como é de praxe, mesmo ela com o pisca alerta ligado, o carro imediatamente atrás profanou incessante buzina, que a importunou, mas não ao ponto de perder as “boas maneiras”. Após infrutíferas tentativas, ela desceu do carro, e educadamente se dirigiu ao enfezado motorista:
– O senhor poderia consertar o meu carro enquanto eu fico buzinado aqui atrás!
Desencontros entre teoria e prática é comum a todas as áreas, e em Arquitetura e Urbanismo não seria diferente. Há muito os profissionais das referidas áreas se alfinetam como se procurassem acentuar a necessidade de parecerem opostos, antagônicos, quando na verdade são inseparáveis e ambos dependem do outro para um perfeito aprimoramento, pois só a troca de experiências e conhecimento nos leva adiante.
Armando Terribili Filho, em seu ensaio “Teoria e prática são duas faces da mesma moeda”( http://webinsider.com.br/2008/01/15/teoria-e-pratica-sao-duas-faces-da-mesma-moeda/) opina sobre o assunto: “Os defensores da prática alegam que a teoria é pouco efetiva, uma vez que sua aplicação é sujeita a condições específicas e particulares. Por outro lado, aqueles que defendem a teoria alegam que os conceitos são as verdadeiras fontes do saber e do conhecimento.”
Por sua vez, o poeta português Fernando Pessoa (13 Jun 1888 // 30 Nov 1935), em ‘Palavras iniciais da Revista de Comércio e Contabilidade’ divaga: “Toda a teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda a prática deve obedecer a uma teoria. Só os espíritos superficiais desligam a teoria da prática, não olhando a que a teoria não é senão uma teoria da prática, e a prática não é senão a prática de uma teoria. Quem não sabe nada dum assunto, e consegue alguma coisa nele por sorte ou acaso, chama «teórico» a quem sabe mais, e, por igual acaso, consegue menos. Quem sabe, mas não sabe aplicar – isto é, quem afinal não sabe, porque não saber aplicar é uma maneira de não saber -, tem rancor a quem aplica por instinto, isto é, sem saber que realmente sabe. Mas, em ambos os casos, para o homem são de espírito e equilibrado de inteligência, há uma separação abusiva. Na vida superior a teoria e a prática completam-se. Foram feitas uma para a outra.”
Imagem: http://multipessoa.net/labirinto/obra-publica/23
Observo, entretanto, que na área da atividade projetual da arquitetura existe um agravante: alguns construtores acreditam que “desenhos” são de natureza teórica, e não “representações” dos futuros espaços construídos, portanto “trabalhos práticos”. Diante deste cenário, o profissional que trabalha com projetos de arquitetura é visto de maneira ambígua: ao olhar do teórico, é encarado como eminentemente prático, esquecendo muitas vezes soluções mais profundas advindo dos conhecimentos acadêmicos, e pelo prático, irresponsavelmente teórico, ao se prender a detalhes, que à sua visão, são muitas vezes desnecessários.
Uma das razões de ter aceitado frequentar as bancas dos trabalhos de graduação é justamente para retornar – nem que seja por poucas horas – ao mundo acadêmico para fortalecer os meus argumentos para o trabalho prático na área de projetos. Não acredito em arquitetura sem um mínimo de fundamentação teórica. Para mim, além do que posso ajudar o graduando com a minha experiência, o momento da banca é uma chance de um novo aprendizado e aperfeiçoamento, uma aproximação com o mundo acadêmico que tanto me fascina. O mesmo ocorre com as pequenas aulas “extras –curriculares” que professores amigos me convidam a ministrar pelas mesmas universidades.
Santiago Calatrava em uma palestra no Rio de Janeiro: Imagem: https://www.google.com.br/search?q=aula+zaha+hadid&rlz=1C1PRFA_enBR430BR430&espv=2&biw=1024&bih=649&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0CAYQ_AUoAWoVChMI9evW3d2fyAIVBRqQCh00LwTP#tbm=isch&q=+santiago+calatrava+palestra&imgrc=P6alQuelJSFZYM%3A
Por outro lado, o convívio com a obra pronta me fez amadurecer em diversas alternativas projetuais que não me vinham inicialmente à cabeça, pois nelas percebo “problemas reais”, tais quais, a falta de dinheiro para acabar, incertezas/dúvidas do cliente, opiniões de terceiros, ingerências, mercado e competitividade, enfim, uma série de interferências externas que somente o convívio com a vida acadêmica não proporciona. E este ambiente, de certa forma hostil ao arquiteto acostumado à “perfeição”, é que é o nosso cotidiano.
Assim George Steiner começa seu livro Presenças Reais: falamos ainda do pôr-do-sol. Que paradoxo este entre o saber e o querer, entre conhecimento e vontade, entre verdade e beleza (O Ato Arquitetônico / Igor Fracalossi e Ruth Verde Zein: http://www.archdaily.com.br/br/623159/o-ato-arquitetonico-igor-fracalossi-e-ruth-verde-zein)
Sou um profissional que gosta muito de freqüentar as obras que idealizo inicialmente em minha mente. Em condições normais, o projeto deveria ser encarado como uma música gravada primeiramente em estúdio e que posteriormente vai sendo “aperfeiçoada” mais e mais quando tocada ao vivo. Isto se não for desvirtuado pelo caminho perdendo sua essência, o que infelizmente é o que acontece em boa parte dos casos em nossa cidade.
Oscar Niemeyer em uma palestra e durante visita a obra da Catedral de Brasília.
Por esta razão evito críticas a colegas que possuem bons trabalhos, mas que “naquele específico” o resultado não foi dos melhores. O que será que ocorreu para o tal “final infeliz”? Será que a “culpa” foi dele? Até que ponto arquitetos tem total ingerência sobre o final da construção?
Entendendo que uma obra é um aperfeiçoamento do projeto, acredito que os melhores exemplares arquitetônicos evoluíram em relação a “dura” representação do desenho. A construção pronta, idéia concretizada com seus espaços e volumes, provoca sensações antes não imaginadas, por melhores que sejam os desenhos e suas representações.
Plantas, Perspectivas e a obra da Casa da Cascata de Wright; a obra é imbatível.
Por outro lado, observando-se melhor o cenário e o desrespeito em que se encontra a arquitetura pernambucana neste momento, com tantos condicionantes – desde nossa ultrapassada legislação até falta de cultura arquitetônica/artística de nossa sociedade – que engessam uma produção mais elaborada e menos óbvia, não tenho medo de afirmar que se os famosos arquitetos do “star sistem” (Gehry, Hadid, Holl, Libeskind, Portzamparc, Foster, Rogers, etc) projetassem em Recife, o resultado seria muito parecido.
Será que se Rogers estivesse em Recife faria algo tão personalizado?
Ultimamente tenho escutado uma saraivada de críticas – verdadeiros apedrejamentos – por parte de alguns amigos contra colegas que estão na luta prática, muitas vezes tentando, quase que inutilmente, fazer um trabalho digno diante tantos problemas e dissabores enfrentados. Este fato me faz lembrar aquele episódio entre o jogador Mané Garrincha e o treinador Vicente Feola, em que após longa explanação do “técnico” explicando como ganhar o jogo, o anjo das pernas tortas dispara a seguinte pérola: “o senhor já combinou com o time adversário?”. Pois é, no cotidiano a arquitetura não se faz sozinha. Precisamos “combinar” com o outro lado. E o outro lado nem sempre nos é favorável.
Por esta razão, repito que o arquiteto é um profissional antropófago, que se destrói mutuamente, fazendo muito mal, principalmente, a ele mesmo. O “outro lado”, em boa parte, já nos é bastante adverso. O mundo já não nos respeita quanto em outras épocas em que se podia apreciar uma obra de arte por longos períodos. E quanto menos aculturada for a sociedade, menos apreço se dará a complexidade de um exemplar mais provocativo e profundo.
Vamos ajudar a “consertar o carro de minha amiga”. Quem projeta sempre será a vidraça. E eu não jogarei pedra alguma.
Conjunto de imagens retiradas da internet
Tota, parabéns pelo texto, jogar pedras é bem mais fácil.
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Pois é Azevedo, aqui em Recife, e Petrolina também, diversas razões levam a decisões que não é de nosso agrado. Precisamos ser mais corporativos para o bem de uma classe como o todo. Não que ache que não deveria ter críticas. É com ela que evoluímos. Mas hoje vemos apedrejamento, que as vezes excede a falta de respeito.
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Muito bom texto Tota. É preciso ter coragem pra Projetar e servir de vitrine.
Parabéns!
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Excelente texto. Traduziu com precisão os sentimentos ambíguos enquanto, mutuamente, estudante e profissional iniciante na área de mercado imobiliário. Enquanto se ouvia muito de um lado, se via outro tanto de outro.
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