Uma Questão de Valor. Por Luciano Medina

Recentemente foi vinculada notícia sobre o Projeto de Lei 3.081/22, do deputado Tiago Mitraud, com a intenção de desregulamentar algumas profissões, dentre as quais a de arquiteto.

A intenção seria “desregulamentar profissões e atividades que não ofereçam risco à segurança, à saúde, à ordem pública, à incolumidade individual e patrimonial “ (JUNIOR). Isto porque seriam estas as bases fundamentais para a regulamentação profissional com a consequente criação de um Conselho profissional que exerceria atividades quanto “a manutenção dos registros profissionais, a deliberação sobre assuntos de ordem ética da profissão correspondente, bem como a devida imposição de sanções legais, como suspensão e até mesmo cassação da autorização para o devido exercício profissional “ (LIMA).

Dentre os colegas de meu círculo de conhecimento que tomaram ciência do fato, logo formaram-se grupos dos que concordaram e dos que discordaram do Projeto de Lei.

Para os que discordam, o principal argumento é o da estruturação do conhecimento necessário para o exercício da profissão: seria preciso uma formação institucionalizada, padronizada e básica. Assim as Faculdades de Arquitetura —por sua vez regulamentadas pelo MEC— seriam as responsáveis por isso, expedindo os diplomas aos capacitados para tanto. Esses discordantes acreditam na consequente extinção das Faculdades de Arquitetura —ainda que mantidas num primeiro momento— com a aplicação do Projeto de Lei.

Dentre os argumentos em favor, há aquele em concordância com aquela formação institucionalizada, mas, que por outro lado, questiona a necessidade de um Conselho que autorize e fiscalize a prática profissional —criando uma reserva de mercado—, obrigando os arquitetos a pagarem, além da anuidade para a manutenção do Conselho, taxas adicionais em razão dos serviços prestados na área —alguns argumentam que isso não passaria de um imposto disfarçado. E ainda questionam a eficiência do Conselho em fazer um bom trabalho de divulgação sobre as nossas atribuições e atividades —o que seria mais importante que simplesmente a fiscalização do exercício—, além de inviabilizar a sobrevivência de outras associações —como o IAB, por exemplo— cujos objetivos seriam de natureza mais cultural. Como essas associações têm de disputar com o Conselho a boa vontade pelos recursos financeiros, muitos colegas não vêm razão para, além de obrigar-se financeiramente com o Conselho, dispenderem valores para outras associações.

Uma outra visão, ainda convergente com a desregulamentação, é mais heterodoxa, pois não vê como necessária sequer a formação institucional, pois bastaria a prática e a experiência. Citam os casos de mestres como o próprio Le Corbusier, Tadao Ando, Álvaro Siza —formou-se após anos de prática assim como Niemeyer— e no Brasil temos o caso referencial de Zanine Caldas. São exemplos de quem através da prática e da reflexão sobre ela, traçou uma trajetória profissional pautada no exercício responsável da profissão e, sobretudo, no valor cultural intrínseco do projetar e fazer Arquitetura —a despeito de toda a formação técnica adquirida com a prática.

Creio serem todas essas ponderações legítimas. Por isso, apesar de ter uma tendência em desejar a desregulamentação —pelo menos, sem a obrigação de manutenção de um Conselho nos moldes atuais—não tenho ainda uma posição firme e convicta. E porque me inclino à desregulamentação? Tentarei explicar, apesar da miríade de argumentos que ainda me revolvem a cabeça quando penso sobre isso.

Quando militava no IAB-PE, fui vice-presidente justamente quando decidíramos sair do CREA e criar o nosso próprio Conselho. Numa das numerosas reuniões de COSU, em Brasília, finalizavam-se os últimos acertos para a criação do CAU. Como vice-presidente do IAB-PE eu não era membro das assembleias que discutiam há algum tempo o assunto, portanto não tinha direito a voto. Porém, tive acesso à última assembleia do COSU e presenciei um dos pontos da pauta relacionado ao nome do termo de responsabilidade de atividade —a taxa de projeto, ou o imposto indireto, como alguns dizem. Discutia-se que ao invés de ART, como estabelecido pelo CREA, deveria chamar-se RRT, para acentuar a diferença entre os Conselhos —penso eu. Lembro-me de ficar surpreso e ingenuamente perguntar ao colega ao meu lado, que era de Pernambuco, o que era aquilo, ao que ele respondeu: ‘é sobre a nossa ART’. Retruquei: ‘e nós vamos ter isso? ’ E ouvi dele: ‘claro! O que é que você queria? ’ Quase que imediatamente respondi: ‘eu queria tudo…menos isso…’

Eu queria ou desejava uma associação colegiada —por livre intenção de associar-se. Na minha cabeça seria o CAB —Colégio de Arquitetos do Brasil—, um nome que representasse todas as outras associações de arquitetos. Sob o guarda-chuva do CAB estaria o IAB, representando o ambiente de discussão cultural da profissão; a ASBEA congregando os escritórios em discutir sobre a atuação como profissionais liberais e outras como as das Faculdades ou de órgãos públicos[1]. Tudo isso sob uma mesma anuidade ou mensalidade e sem a coerção de associar-se obrigatoriamente para poder ‘legalmente’ exercer a profissão —em oposição ao que chamávamos à época de ‘Cartório do CREA’. Pensava até que o Colégio poderia organizar, em forma de biblioteca, os portfólios dos arquitetos, escritórios, faculdades e assim por diante, para fins de consulta e divulgação institucional ao público. Enfim, uma entidade profissional de valoração da profissão, não de fiscalização e de autorização profissional. Deste modo, que arquiteto não estaria disposto a se associar a uma tal entidade? Pelo menos eu assim pensei e desejei um dia….

No desenvolvimento dos argumentos concordantes e discordantes ouvi digressões sobre o mercado de projetos ligados à Arquitetura. Excesso de oferta de arquitetos, reserva seletiva de mercado, o valor do trabalho/projeto e por aí vamos.

Na tentativa de emitir ou formar pelo menos uma opinião —minhas reflexões ainda não chegaram a ponderações que me permitam ter uma postura—, eu diria que as questões de mercado —demanda/oferta/valor— são relevantes, mas não ajudam no entendimento da questão, que para mim, passa até, pelo valor, porém, não o mercadológico/monetário, mas o valor cultural do trabalho do arquiteto.

Por anos presenciei no IAB e no CAU algumas discussões sobre honorários — correndo o risco de digredir do tema, ao tomar referências nessas questões de honorários, peço um pouco de paciência para que avaliem meus argumentos.  Essas discussões eram baseadas na dimensão quantitativa da nossa produção e na dimensão técnica do nosso trabalho —talvez por ser ou parecer mensurável[2]—, buscando uma desejável legitimidade para estabelecer um padrão/valor de remuneração —esquecendo que nas regras que regem o comércio, um pré-acordo de preço entre os produtores, pode constituir o que os especialistas chamam de cartel.

Ao basearmo-nos apenas no critério de que somos técnicos e produzimos coisas quantificáveis, estabelecemos uma base de preços presumivelmente mensurável. Podendo-se, daí inclusive, dizer dos que não a praticam —precificando a menor—, estarem desvalorizando a profissão e aviltando a prática. Quase sempre os mais jovens são apontados por tal prática. Sem que se pondere uma condição que o mercado impõe —isto tem a ver com comportamento cultural-mercadológico— ao jovem e iniciante, como uma primeira estratégia de inserção comercial: a aplicação de um menor e atrativo preço. Todavia, os mais ‘velhos’ e experientes sempre apontaram isso como uma concorrência desleal —pouco vi apontarem as dificuldades dos iniciantes em competir em licitações face as exigências de ‘acervo técnico’, quase sempre exclusivo dos de ‘muita experiência’.

Voltando às discussões passadas do IAB sobre honorários e valoração profissional —confesso a dificuldade em manter o foco—, não me recordo de alguém que apontou não sermos, em essência, apenas profissionais técnicos —talvez tenha tentado, mas não convenci.

A Arquitetura ainda é uma Arte? Eu acredito que sim. Se isso fosse senso comum, entre nós arquitetos, estaríamos convictos de nosso papel: produzir artefatos culturais —lembro-me, em dos COSUs da vida, ouvir de um colega paulista, mais experiente, queixa de que colegas esqueceram da ‘produção de artefatos culturais’ de que somos imbuídos. Somos artistas! Produzimos objetos que comunicam mais significados do que a própria aparência desses objetos. Para mim, é esta a mais essencial definição de Arte: criar objetos com densidade de significados. Claro, Argan sempre disse que a cidade —somadas as boas e más arquiteturas ou construções— é um objeto artístico, independente dos seus valores estéticos, mas isso é outro assunto.

Então, a meu ver —neste momento de minhas reflexões— nós arquitetos, inclusos o Conselho e outras associações, t-a-l-v-e-z, nunca tenhamos nos preocupado, de verdade, em informar ao público de que somos mais do que técnicos.

Nós somos artistas e essa dimensão de nosso ofício agrega valores de natureza material e imaterial. O preço do nosso trabalho —voltando novamente a esse assunto chato— dependeria, mais que nunca, da percepção que o público ou consumidor lhe atribui como gerador de fatos e artefatos culturais —aliás, há muito tempo a Escola Austríaca de Economia já havia estabelecido a premissa de que o preço do produto não é definido por um agregado de custos e insumos, mas o preço é definido por uma relação que ocorre no interior de um sistema integrado, sistema esse que é o resultado das várias relações humanas. “ (MISES). A Arte e o seu mercado, sua precificação —jargão economês—, ajudaram e muito no estabelecimento das novas teorias do preço.

Para o público leigo —fazendo uma inferência passível de imprecisões—, a Arquitetura é cultura. É o que me parece. Mas, para esses, apenas os edifícios monumentais e históricos constituem Arquitetura. É uma visão deformada e tacanha, fruto da pobreza cultural e da nossa incapacidade para com o público. Nós, arquitetos, sabemos que não é assim. Porém, nós, aparentemente por quaisquer razões não ‘vendemos’ ou praticamos isso como nosso melhor valor de ofício.

Daí eu acredito que, por tal, precisemos de diplomas, de registros, de Conselhos —mais que do reconhecimento do valor essencial do nosso trabalho em si—, para afirmarmos perante a sociedade que esses diplomas, registros e Conselhos nos apresentam como especialistas em desenhar edifícios e menos como  artistas que criam espaços.

PARA MIM, NÓS VIVEMOS UM PROBLEMA DE IDENTIDADE. Em sendo assim, nós não conseguimos definir quais são os verdadeiros valores que nos afirmam, independentemente de ratificações oficiais e burocráticas.

Não acredito se tratar de determinar se o nosso trabalho oferece ‘risco à segurança, à saúde, à ordem pública, à incolumidade individual e patrimonial’ ouse precisamos de uma organização que estabeleçaa devida ‘imposição de sanções legais, como suspensão e até mesmo cassação da autorização para o devido exercício profissional’, nem se precisamos obrigatoriamente de diploma e de formação institucional, pois para mim, se reconhecermos qual é o nosso papel na formação cultural e o valor que isso implica, essa discussão não teve, não tem e nunca terá a menor importância.

Luciano L. Medina Arquiteto e Professor Adjunto do Depto. de Arquitetura e Urbanismo da UFPE

Referências

JUNIOR, Ricardo. Fim do diploma para engenheiro, psicólogo e outras 33 profissões. Jornal Contábil, 04 de Janeiro de 2023. Disponível em: <https://www.jornalcontabil.com.br/fim-do-diploma-para-engenheiro-psicologo-e-outras-33-profissoes/?s=08>. Acesso em 30.01.2023

LIMA, Mariana M.  Natureza, atribuições e competências dos Conselhos Profissionais.  Capital Jurídico, 12 de maio de 2021. Disponível em: <https://www.revistacapitaljuridico.com.br/post/natureza-atribuicoes-e-competencias-dos-conselhos-profissionais>. Acesso em 30.01.2023.

MISES, Ludwig V. A Origem dos Preços. Mises Brasil, 07 de setembro de 2008. Disponível em: < https://www.mises.org.br/article/148/a-origem-dos-precos>. Acesso em 30.01.2023


[1] Em molde semelhante ao que existe na Espanha.

[2] Isto, conjecturo, possa ter a ver com uma ideia de que o preço de qualquer coisa pode ser determinado pela simples soma de insumos diretos que ajudam a formar um produto —quase sempre fabril. Mas a teoria econômica moderna diz que esta visão está superada, pois o preço, de fato, é definido pela vontade e desejo do consumidor e outros fatores combinados.

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